Jigorô Kanô, ingênuo modernizador
Nascido em 1860, Jigorô Kanô não foi simplesmente o brilhante fundador do judô; ele ocupou, simultaneamente, cargos diferentes de altas responsabilidades em escolas prestigiosas e universidades. Um esboço de sua carreira mostra um sucesso incrível como professor e um desejo ardente de fazer o mundo reconhecer o Japão.
Em primeiro lugar, foi professor de política e economia na Gakushuin (学習院), uma instituição muito famosa, e recrutou seus alunos nas classes mais elevadas; foi gerente assistente da mesma escola quatro anos depois; atuou como gerente na escola secundária do regime antigo de Kumamoto (a atual Universidade Nacional de Kumamoto); passou 33 anos na gerência da Escola Secundária de Tokyo (atual Faculdade das Artes Liberais de Tokyo (atual Universidade de Tsukuba): foi, várias vezes, conselheiro para o Ministério da Educação, o primeiro membro asiático do Comitê Olímpico, em 1909, e o líder da primeira delegação japonesa aos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912.
Os atletas que o acompanharam não praticavam judô, mas eram especialistas em corridas.
Jigorô morreu no mar, em 1938, após fazer numerosas viagens ao exterior a pedido do Ministério da Educaçao para pesquisar os diferentes sistemas de ensino e para propagar o judô ao redor do mundo.
Todos os autores concordam que a primeira motivação de Jigorô Kanô para praticar o jújutsu tinha uma origem muito simples e completamente pessoal: a modalidade tinha a reputação de permitir superar um adversário mais forte, e Kanô, de tamanho pequeno e constituição fraca, seguramente sofria de um complexo de inferioridade.
Foi necessário esperar por muito tempo, e só depois de inúmeras pesquisas Kanô teve a oportunidade de conhecer um mestre de jújutsu. Ele encontrou Fukuda Hachinosuke, sôke da Tenshin shinyo-ryu, em 1877, ano em que entrou na universidade. Fukuda seguia a educação da mesma escola administrada por Iso Masatomo quando morreu, em 1879. Este último morreu dois anos depois e Kanô voltou para uma outra escola, Kitô-ryu, cujo mestre era Iikubo Tsunetoshi.
Assim, tendo estudado só o jújutsu de duas escolas tradicionais do período Edo, Tenshin shinyo-ryu (天神真楊流) e Kitô-ryu (起倒流), como também vários métodos de condicionamento corporal ocidental, Kanô concluiu que aquele jújutsu era o mais eficiente e equilibrado de todos.
Concentrado, na maioria dos casos, no aspecto instrutivo e na ginástica do jújutsu, ele retirou as partes que considerou perigosas e fundou, em 1882, a sua própria escola, Kôdôkan (講道館, residência, associação onde o caminho é ensinado), onde desenvolveu o judô, uma disciplina baseada na prática física e moralidades para o mundo moderno. Rapidamente, a prática se tornou bastante popular.
O diferencial de Kanô no cenário do fim do século XIX ou início do XX foi que ele não satisfez seu interesse pela educação se dedicando a uma atividade que é, principalmente, intelectual, mas sim buscou um comprometimento físico, através do treinamento e da disciplina. Foi por meio disso, da prática do judô, que ele mirou na promoção de um treinamento espiritual.
Porém, ao longo de sua vida, Kanô sempre tentou promover o Kôdôkan judô como um método físico de treinamento derivado da “modernização” do jújutsu, para evitar que qualquer pessoa cometesse o erro de considerar o judô uma luta ou arte do guerreiro destinada ao uso nas guerras, como o bujutsu clássico. Depois da morte de Kanô, o exército assumiu o judô lentamente e incorporou ao treinamento militar, cuja interpretação levava a crer, de maneira equivocada, que ele era o verdadeiro bujutsu.
Por outro lado, a publicação do “Sugata Sanshiro” por Tomita Tsuneo em 1942 – e a tremenda popularidade que se seguiu – é, certamente, a origem da confusão que levou uma grande parte dos praticantes de hoje a considerar o judô uma arte de luta.
De acordo com Kanô, “o judô não é uma ‘arte marcial’simples, mas um grande caminho (‘dô’), princípio que se aplica a tudo”. O caminho aponta para o “ótimo uso da energia vital para alcançar a perfeição e, então, o sucesso, para si mesmo e para os outros”. A perfeição que é contemplada surge pelos estudos no qual “a pessoa se dedica completamente (...) pela confiança em sua própria força”, conduzindo para um “grande sucesso futuro”que permitirá se tornar “um pilar do estado (...) capaz de ajudar o país evoluir”. Os pensamentos de Kanô ligam intimamente o indivíduo ao grupo, que, neste caso, é o estado japonês em desenvolvimento. O conceito de “caminho”(“michi” ou “dô”), que é fundamental para Kanô, tem suas raízes no taoísmo e budismo e significa a procura da harmonia entre os homens e o universo. Essa idéia de que o ser humano pode melhorar vivendo em harmonia com o universo pela prática de certas técnicas está implícita nas artes marciais do fim do período Edo, mas Kanô foi o primeiro a formular isso em termos, que respeitam as exigências da sociedade japonesa moderna. A harmonia procurada adéqua-se agora ao bem coletivo, é o que diz o estado novo.
Durante o mesmo período em que o judô foi criado, outra forma derivada dele, o kôsen-judô, que é a abreviação de Kôtô Senmon judô, surgida em Kyoto dentro do Nihon Butokukai, instituição fundada em 1895, se desenvolveu. O kôsen-judô é diferente do judô de um modo muito importante: tudo se concentra em Ne-waza (寝技, técnicas de submissão de lutas de chão). O desafio não tem limite de tempo, normalmente não há nenhuma categoria de peso e as lutas acontecem no chão. A primeira competição de kôsen-judô aconteceu em 1926, em Kansai. O kôsen-judô, para seus fundadores, era a materialização do conceito tão estimado por Kanô, Seiryoku zenyô (精力善用).
Para os membros da Butokukai de alta graduação, o kôsen-judô era o puro e esplêndido judô, e para eles a beleza e racionalidade de seus movimentos honravam o judô de Kanô. Não havia uso de força física, eles só utilizavam a elasticidade e um sistema inteligente de alavanca para “descansar” os ossos do corpo e, assim, livrar ou aplicar as técnicas diferentes de estrangulações, controles muscular e ósseo.
As técnicas de chão, ao contrário do que ocorreu com o Kôdôkan Judô, foram aplicadas ao seu máximo. Um grande número de estrangulações, deslocamentos de tornozelos e pulsos, golpes que não eram usados no Kôdôkan Judo, foram aplicados e estudados durante as aulas de kôsen-judô, e torneios deram a oportunidade para os empregar a diferentes tipos de oponentes.
Com a introdução do Okinawa tôte (沖縄唐手), que se tornou karatê-dô (空手道), por Funakoshi Gishin (1870-1957), e a criação do Ueshiba-ryu (植芝流), que se tornou aikidô (合気道), kendô e todas as disciplinas dentro das disciplinas do “dô” que se seguiram, as artes de luta clássica e o jújutsu foram, lentamente, se tornando parte de um mundo clandestino ...
Kanô ajudou Funakoshi e Ueshiba a estabelecer e promover as suas disciplinas. A primeira demonstração de karatê em Tokyo foi executada por Funakoshi (que, aliás, nutria um respeito muito profundo por Kanô) e aconteceu no Kôdôkan seguindo um convite do próprio Kanô.
Os melhores faixas pretas de Kanô foram enviados para estudar essas novas artes marciais. A maioria deles, como Tomiki, Sugino e Mochizuki, até mesmo interromperam a prática do judô para se dedicar integralmente às suas disciplinas novas.
Todas as disciplinas criadas durante esse período pediram emprestado o sistema de ranqueamento do Kôdôkan. A contribuição de Kanô nessa época foi inestimável, mas muitas pessoas esqueceram isso.
O trabalho de Kanô, assim como sua visão do judô, ainda não foi bem absorvido no mundo ocidental, e até mesmo no Japão seus conhecimentos permanecem incompletos, para não dizer inexistentes. Não se acha nada muito concreto sobre a visão e o judô de Kanô na literatura, a não ser o trabalho cultural sobre as realizações dele empreendido pro Yves Cadot e baseado nos textos originais escritos pelo próprio Kanô.
Mas o que realmente aconteceu com o jújutsu clássico, que é transmitido a um único herdeiro? O que aconteceu a essa arte de luta que inclui armas, golpes e percussões?
Vale a pena especificar certos pontos chave de importância. Em primeiro lugar, Kanô não estudou o jújutsu por um longo tempo, mesmo possuindo uma inteligência não muito comum entre os praticantes de seu período. Ele esteve bem atento à ciência vasta que o jújutsu ofereceu, mas não foi capaz de conhecer de primeiro plano mestres de jújutsu clássicos.
Embora Kanô estudasse um número significativo de manuscritos, a sua prática de jújutsu só era restrita a Kitô-ryu e Tenshin shinyo-ryu. Essas duas escolas também foram fundadas durante o período Edo e, então, o movimento do corpo, como também o uso das armas, já tinham sido diluídos ou não transmitidos em função da incapacidade de se achar um sucessor válido. Então, não estou falando sobre o jújutsu que permite lidar com várias situações e armas, a exemplo do que fazem as seguintes escolas clássicas: Takeuchi-ryu (竹内流), Hokki-ryu (伯耆流), Shoshô-ryu (諸賞流), Asayama Ichiden-ryu ( 浅山一伝流) e Yagyú shingan-ryu (柳生心眼流).
Também note que Kanô não recebeu transmissão completa das escolas de jújutsu que ele estudou. Seu respeito profundo aos estilos clássicos o fez enviar alguns dos seus próprios estudantes para outras escolas tradicionais, como a Tenshin shôden katori shintô-ryu (天神正伝香取神道流), que é uma das primeiras filiais do kenjutsu e jôjutsu do Japão.
Por conseguinte, se um grande visionário com habilidades pedagógicas com Kanô, criador do Judô incomparável, teve pequeno ou incompleto conhecimento prático do jújutsu clássico, o que dirá então seus alunos, outros praticantes japoneses e não-praticantes desse período?
A maioria dos praticantes de Kôdôkan judô, como os de hoje, não conhecia quase nada sobre o jújutsu clássico. Para grande parte deles, o Kôdôkan judô era o jújutsu mais eficiente, já que quase todos tinham visto o verdadeiro jújutsu.
O estudo das escolas clássicas não era feito em público, porém havia exceções. Por exemplo, mestres como Toku Sanbô e Kyuzo Mifune tiveram a chance de conhecer mestres do jújutsu clássico, o que não era comum.
Também pode-se realçar o fato de que o desenvolvimento rápido do kôsen-judô, cujas técnicas foram herdadas do judô, conduziu vários praticantes do Kôdôkan judô a reconsiderar a importância do uso das técnicas de lutas de chão. Vale especificar que esse tipo de técnica fica interessante em um tatami ou superfície semelhante, mas em uma luta real, na rua ou em um campo de batalha, é totalmente diferente: você não vai ao chão porque há vários oponentes, e o chão não tem a proteção do tatami, entre outros fatores.
Assim, se o conhecimento do jújutsu sob o ponto de vista japonês, como também dentro do Kôdôkan, estava incompleto, o que podemos dizer sobre os outros países?
No meio do século XIX, numerosos japoneses imigraram para o Brasil. Com o fluxo de imigração para os Estados Unidos, Havaí e Nova Zelândia estava fechado, o país apareceu como o Eldorado para escapar da falta de espaço e do militarismo que assumiam o arquipélago nipônico. Várias famílias foram para o Brasil cultivar tabaco e arroz.
* Texto extraído do livro A Arte do Ninja - Entre ilusão e realidade - Kacem Zoughari - Editora JBC
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